Na
idealização da técnica, o objeto desfalece.
Sérgio vai pescando nos anos 80 e 90 seus peixes
linoleográficos e passa as férias produzindo locomotivas,
imagens, quando não estantes
ou vasos de plantas. Em 1999, porém, seus peixes se afogam na
tempestade que os colhe enquanto deslizam pelas seqüências
gráficas interferentes. Escancarando-se as fronteiras da
pesquisa técnica e do objeto que está à
mão, pacificado, a técnica, antes estritamente obedecida
enquanto projeto, de que é exemplo a rígida
sucessão das cores na impressão das linoleogravuras,
deslineariza-se: desfeitos os itinerários asseguradores, os
percursos emaranham-se, dedálicos e descontínuos, pois a
improvisação toma conta da impressão. A viragem de
1999 desfaz as relação das duas espécies de
gravuras com o acrescentamento da técnica mista, aqui referida
como desmentido das idealizações antes dela
dominantes. A sobrevinda de uma terceira arte do papel no
momento em que tudo se embaralha com a volta, também, de vasos,
agora de bromélias e orquídeas, é impeditiva da
concepção de relações entre
seqüências ou, de modo mais abrangente, de
intersecção de conjuntos objetais, como os da aquarela e
do desenho dos anos 70 e 80: aqui, nada se distingue ou se
localiza.
Não se sustenta mais a idealização, cujo
fechamento o retorno de objetos dos decênios precedentes intenta
em vão reforçar, pois até a rotina e a emotividade
se evidenciam inacessíveis quando os controles obsessivos
estão desativados. Desejante, o lapso atravessa as
seqüências, já na irrupção da politipia
que desloca a linoleogravura e, com ela, amplia o campo da
figuração como técnica e objeto: a pesquisa
artística controlada e ritualizada em linoleogravuras
idealizantes se oferece como emotividade técnica, sinal que a
politipia nascente ressitua adiante, quando as seqüências
das duas gravuras passam a correr paralelas. Mas, com a segunda viragem
reduzida a pena entre muitas de leque artístico, a
idealização exibe-se emotivamente arrefecida, a
significar a ruptura das articulações vigentes. Da
afirmação de 1998, à ruptura de 1999,
aclara-se a reclassificação de posições;
com a desidealização das espécies
artísticas, das cotidianeidades aos peixes não menos
idealizados, as posições desarticulam-se, muito embora o
sinal não seja, necessariamente, disfórico, declarando-se
Sérgio eufórico com a liberdade que a viragem traz para a
sua arte.
A fratura das artes conhece dois momentos, pois, tanto em 1998, surgida
a politipia, quanto em 1999, generalizado o reviramento, rearticula-se
ou desarticula-se seu campo. A politipia afeta em 1998 a
linoleogravura, como se viu, de modo que o segundo abalo se exerce
sobre as duas, enquanto estáveis e interferentes. Mas, se em
1998 a desobsessivação da linoleogravura ocorre com o
aparecimento da politipia, mantendo-se, contudo, a
idealização, em 1999 a mesma
desobsessivação sobrevém acompanhada de
desidealização intensíssima. A liberdade
mantém-se como emoção na coisa, afetando mais a
técnica que o objeto, também eles abalados. O replantio
de vasos linoleográficos e, principalmente, a técnica mista indicam a
ampliação do campo das artes. Os dois momentos
constroem-se como lapso, triunfo do desejo de Sérgio, e
propõem a viragem como desobsessivante, tanto técnica,
quanto objetalmente; o objeto pode ser considerado iconográfica
e estilisticamente, rompido e desarticulado de modo imprevisto no
naufrágio da posição antes bem ancorada.
Os momentos de 1998 e 1999 distinguem-se como ocorrências
reciprocamente irredutíveis ou como encadeados sucessivamente:
são hipóteses que entendem as viragens como triunfais
lógicas de lapso em movimento deslocante ou destroçante
ruptura. A irrupção da politipia modifica a
posição de Sérgio, mas a idealização
mantida desde o começo de seu trabalho nos anos 70 não
está abalada; por isso, a primeira incidência do lapso,
por acrescentar uma gravura desconhecida ao repertório
gráfico, fornece, no afirmativo da ocorrência e de sua
idealização, argumentos que valorizam a segunda viragem
como incidência determinante; pois, em 1999, todas as artes
estão subvertidas e a idealização, restrita a uma
só pena, arrepiada. A segunda incidência reverte
posições, desfazendo em todas as artes o que estava
feito, assim, a própria noção do fazer, essencial
à poética idealizante de Sérgio. É um
segundo lapso, efeito do primeiro, retrospectivamente, pois há
enunciação e evento em ambos, afetando a ruptura a
própria politipia, tal como surgida em 1998. A hipótese,
aqui, é propagar-se, sem registro, o abalo de 1998, imposto o
silêncio do objeto que liga as duas datas.
Nas idas e vindas entre os momentos de 1998 e 1999, a
posição de enunciação é
determinante, pois tanto se pode separar um de outro mecanicamente,
quanto se os pode aproximar heuristicamente: aqui, o abalo precedente
causa o subseqüente, sendo por este explicitado, de modo que um se
propaga no outro em dois sentidos. Dramatizando-se o efeito do segundo,
obtém-se mais barulho que eficácia, pois o que, em 1999,
está tracejado a partir de 1998 é o sem-volta das artes,
relativamente às posições precedentes,
excetuando-se a idealização nas diversas técnicas
e objetos. Mas, em 1999, a politipia, como as demais artes do papel,
aparece como abandono da idealização cultivada em vasos e
peixes, não requerendo a tesoura compositiva, uma vez que a
composição está desativada pela mistura, na qual a
justaposição prevalece: a parataxe estende-se, da
politipia, à linoleogravura e à técnica mista,
não se fazendo seleção de partes em vista de
unidade compositiva.
A posição brutalista da politipia, associável ao pop
ou ao expressionismo, conquanto não haja escolha
estilística em Sérgio, afeta a linoleogravura e a
técnica mista que se rebatem nela, distantes já a
seqüência rígida da execução e o
decoroso fechamento dos procedimentos. Por isso, no concernente
à impressão, a politipia, afastada a
composição por tesoura, põe em evidência o
aleatório do registro gráfico. Assim, a
sobreposição das impressões segue curva gaussiana,
acumulando-se as tintas na área central do papel, em detrimento
das bordas. Tal efeito tem relevância, porque confere às
regiões limítrofes do papel o valor de molduras
irregulares e tênues, fantasmagorias que assombram o
contemplador.
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