POLITIPIA: LAPSO E SALTO
Leon Kossovitch
Dez/99 - Jan/00
Soltas ou reunidas em álbum, as politipias
de Sérgio de Moraes irrompem, súbitas, em 1998.
Não sendo resultado de pesquisa programada ou controlada,
característica de seu trabalho minudente, as politipias saltam,
prontas, quando menos se espera, de trás das
linoleogravuras a que Sérgio se dedica há quase vinte
anos. Impressas em papel impermeável, colocado entre a
entretela que recebe a impressão linoleográfica e o
feltro protetor da placa da prensa, as politipias nascem como efeito de
percolação: retendo o excesso de tinta que atravessa a
entretela, o papel torna-se um segundo suporte. Segunda, a politipia
constitui-se como passagem do papel do estado de dejeto de
linoleogravura ao de resto: tamisando irregularmente a tinta impressa
dezenas de vezes por placas e recortes de linóleo, a entretela
opera como segunda matriz, ainda que indireta, da politipia, pois, de
passiva, passa a ativa.
Mais, porém, do que resultado das relações de
suportes e matrizes, a politipia é mudança que afeta a
posição artística de Sérgio: nela, o gesto
distraído de descarte, repetido por anos e anos, é
subitamente suspenso e expõe o que se deposita no papel
impermeável. No lance, a politipia dilata o campo numeroso das
gravuras e, passando da inexistência à existência,
institui-se como arte gráfica singular. A invenção
de Sérgio ressalta, pois, do que inicialmente é descarte
da impressão linoleográfica: atribuível ora ao
acaso como feliz encontro, ora à necessidade como rígida
conseqüência, a politipia não pertence, contudo, ao
instante do achado ou ao intervalo do desenvolvimento: lapso, seu
é o tempo que se qualifica em relação ao
surgimento e à vicissitude, declarados após centenas de
folhas separadas, dezenas delas classificadas, umas poucas destas
recortadas e um nome comum a todas elas dado.
Conquanto a invenção requeira tópicas, sendo os
lugares desconhecidos da arte nascente, são eles
extraídos, pelo menos em sua maior parte, da linoleogravura, a
qual, precedendo a politipia, faz em torno de si gravitar conceitos,
técnicas, tempo; em 1999, desfeita a relação
unilateral do início, as duas espécies de gravuras
dispensam precedências pois estabelecem entre si cruzamentos
diversos. As temporalizações estão na base da
construção, aqui intentada, da obra de Sérgio e,
por sua vez, nesta se declaram. A distinção entre
um evento original e um desenvolvimento ulterior tende a propor uma
temporalização progressiva e fatual, de espécie
pedagógica, psicológica ou outra, semelhante, que
articule noções impertinentes no que concerne ao
surgimento da politipia e às vicissitudes seqüentes
à sua instauração; não se trata, pois, de
reter noções ligadas à aprendizagem ou ao
amadurecimento de uma obra, mas, de mover conceitos que constroem
viragens imprevistas.
A construção da viragem considera recorrências de
várias espécies, tidas como essenciais à
temporalização: tanto o início, quanto qualquer
outro momento, assim como os intervalos, circulam e recirculam,
retomando-se incessantemente nos dois sentidos. Nem o instante nem o
intervalo sendo fatuais, pois construtos, dispensa-se a
emoção suposta de um momento épico em que a
politipia tenha nascido, mas também se alivia o peso de um
intervalo raciocinante, cuja monotonia esteja na
reposição do mesmo ou no desenvolvimento regrado do
também mesmo, lembrando-se que a emotividade, aqui ligada
à rememoração, normaliza o processo; este,
entretanto, afastando o afetivo enquanto calor de gênese,
procede, glacial, por recolha e classificação de
papéis, os quais, por sua vez, exigem a arbitragem de nome com o
qual se relancem os conceitos, recursivamente declarantes da
própria invenção. Na construção,
"surgimento" designa a distinção de politipia
e linoleogravura, como diferença de derivada e
primitiva: técnica, conceitual, temporalmente derivada, a
politipia só pende, entretanto, da linoleogravura em 1998, uma
vez que, no ano seguinte, ambas se relacionam como
seqüências paralelas e interferentes.
A politipia desponta como canteiro de conceitos, no qual a
linoleogravura e outras artes de Sérgio passam a, em grande
extensão, conceber-se. No início, todavia, cernindo-se
tecnicamente as seqüências, o tamisamento
linoleográfico pela entretela suaviza a rigidez dos cortes do
linóleo, enquanto a percolação, produzida sob
pressão diferencial da placa, é modulada nas áreas
tingidas do papel impermeável. Tal derivação
não inclui, portanto, a politipia em outras artes do
tamisamento, como a serigrafia, que não modula ou diversifica as
tintas, pois esses efeitos da impressão linoleográfica em
entretela evidenciam a impossibilidade de controle, por parte do
impressor, do resultado, inflexão decisiva com que
Sérgio passa a debater-se doravante: essa impossibilidade de
controle exemplifica outra, ulterior, a de Sérgio manter
projetos obsessivantes que linearizem a impressão. Rebatendo-se
na linoleogravura em 1999, essa conseqüência deriva a
primitiva da derivada sob aspectos básicos seus, invertendo-se a
preeminência respectiva das duas espécies de gravuras.
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