Ao aparecer, a politipia, como se viu,
tangencia a linoleogravura e, sendo heterônoma sua
poética, sua idealização lírica vem
flutuando desde os anos 70. Dominante nas aquarelas, desenhos e
gravuras, tal lirismo é hegemônico, não se fazendo
notar por falta de quaisquer contrastes ou diferenças no
conjunto da obra, pois somente detectado como arrepio no leque
estendido entre as sutilezas idealizantes, sua posição, e
o extremo oposto das brutezas de sentido pop ou expressionista. O retrato
de Cíntia com broche de peixe, a um tempo
diretíssimo e refinado como citação abrupta de
ourivesaria animalista merovíngia ou longobarda, traz a
seqüência anterior de auto-retratos de Sérgio, nos
quais o brutalismo expõe todas as imagens; no cotejo da
técnica mista de Cíntia e dos linóleos com
Sérgio, o brutalismo não desmente a generalidade
hegemônica da idealização pois opera como
espécie de lapso, recorrentemente explicitado no presente da viragem artística, em que cintila
a multiplicidade inclusiva e divergente de obras. Outro exemplo, o do peixe-zepelim de 1998, todo ele pop no grafismo
simplificado no alto de mais áreas minuciosamente elaboradas,
recorre na cabeça feminina do ano seguinte, linóleo com
os mesmos traços de gibi.
As interferências externas ao campo abrangente da
idealização aparecem como ocorrências que,
recorrentemente, afiguram-se como os possíveis de uma
atualização futura a partir da posição
presente que, corrente no passado construído, coincide com tal
futuro, também construído, posição que
é a do mesmo presente da reflexão de Sérgio e da
deste texto, de fins de 1999. Aproximando diversas
projeções, artísticas, textuais, outras, este fim
de ano é, assim, ponto de acumulação,
não mero entorno, das conseqüências tiradas por
Sérgio sobre o reviramento de sua obra. Pois a
delimitação do lirismo como gênero entre outros
corresponde, invertendo-se o sentido temporal, à sua
amplidão, tempo de Sérgio e outros artistas principiantes
nos anos 70, em que se estampa uma dupla e simultânea
orientação, a invenção do cotidiano e a
pesquisa da técnica. Estes artistas, quando ligados à
gravura, têm na técnica o centro daquilo a que,
então, se chama "o fazer", recuando o objeto da
figuração, neles diferenciado e reduzido a assunto ou
narração, quando não, desprezado como
ilustração.
Claro está que o abstracionismo, a arte conceitual, o
neo-expressionismo não lhes dizem respeito, pelo menos enquanto
estilos, de modo que a figuração não se estabelece
como pendência de um primeiro literário ou de outro,
político ou "social", como se diz então de modo
pitoresco, que objete aos artistas posições que os
subordinem e lhes tornem heterônoma a arte. Sem discurso pronto
que dirija a gravura, Sérgio e seus amigos comprazem-se com o
cotidiano, não decerto com o que é cúmplice da
exploração, pois são socialistas, mas com o que,
fugindo da heteronomia, deve ser de todos, e que alheie por isso, toda
fala autoritária. Essas posições diferem de
outras, igualmente ligadas à figuração dos anos
70: a tendência, na maior parte das posições
referidas, é crítica e valorizadora da técnica.
Quanto a Sérgio, o cotidiano, sendo arte, para ele,
democrática, está inicialmente em desenhos de interiores,
vasos e outras cotidianeidades, mas também de brinquedos da
filha, depois em aquarelas e gravuras, nas quais afloram, dominantes,
peixes, fauna e flora marinha, marinhas. Sendo as coisas da arte
menores, o envolvimento em aura não entrega o cotidiano ao que
se idealiza com lirismo suposto subjetivo. Pois, lírico e
idealizado em si mesmo, o cotidiano associa as artes de Sérgio a
idealizações sem transcendência, dessublimando-se,
assubjetivo, o lirismo: se estivesse de pé o campo doutrinal
vindo da poética greco-romana e interrompido no século
XVIII, falar-se- ia, aqui, em gênero.
Conseqüência da definição das coisas menores
é a estabilidade: na idealização imanente, os
objetos se estabilizam para não desviar do "fazer" a pesquisa
artística; palavra-de-ordem de Sérgio, o fazer é,
a um tempo, o objeto imobilizado por aura e a técnica tornada
ágil por essa libertação frente ao mesmo objeto. A
idealização deste corresponde, assim, à
hiperidealização da técnica, que se hieratiza,
poética. Não se segue disso, porém, qualquer
niilismo, porquanto, como se viu, a obra não depende de um outro
que lhe dê sentido ou ser. A coisa aparece em Sérgio como
junção de objeto e técnica, alheia ao niilismo de
espécie político-sociologizante que domina nos anos 70 e
de que a noção-panacéia "contexto" é
hipóstase a um tempo inculta e feroz. O niilismo de "contexto",
enquanto incessante diferimento da coisa, trama-se mais tarde como
plenitude monstruosa no assalto ao bem público e no correlato
genocídio programado pelos malfeitores ranfástidas, que
já não floreiam "contextos", pois vociferam uma
paralisante "globalização", com a qual o bando arribado
ainda é englobante, portanto, arrogante ditador de normas: com
ameaças, medos, terrores, transcende, indecoroso, a coisa,
alegando qualquer indecência como razão. Não
há, em Sérgio, diferimento de qualquer sorte: seu
cotidiano socialista está articulado no ético e no
estético
O lirismo das coisas menores implica, pois, a política, a qual,
entretanto, não se erige como norma do poético, recusada
por autoritária. Assim, dispensando o geral das doutrinas,
Sérgio pode atualizar alguns trechos seus sem o saber, o que
exemplifica a manutenção, nele, das duas faces do
juízo, a arte e a moral, como vem dos Gregos e Romanos e como se
declara nos séculos XVI e XVII. Não é fortuito que
também os avatares do jdanovismo mantenham, no tempo,
articulação contra-reformista, pois, não menos
neles, o artístico pende de diretivas moralizantes que calam a
política. Na junção do ético e do
estético, retoma-se, nos anos 70, conjunto anterior de textos,
em que a distinção de arte e artesanato prevalece, como
então se escreve, na unidade da obra. O artesanato, como se
lê nos escritos daqueles anos, moraliza a arte como se a
politizasse, enquanto a impede de migrar para posições,
apresentadas estereotipadamente como sendo as da arte pela arte:
é na articulação distintiva que Sérgio e
seus amigos fundam o primado da pesquisa técnica a um tempo na
estética e na ética. Estando imobilizado o objeto, a
idealização da técnica evita a
oposição da universal razão ao singular
sentimento, disjunção dogmática que a esquerda de
Sérgio recusa embora mantenha o primado da pesquisa
técnica, hiperidealizada, pois a um tempo poetizada e poetizante.
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