Ao surgir, em continuidade com a
linoleogravura, a politipia entende-se, enquanto derivada, como
tangente em ponto; depois, porém, as relações
interferentes estabelecem-se entre paralelas, sem ponto que as projete
convergentes, dada a dispersão proliferante dos pontos de
cruzamento em que uma à outra pensa. O ponto de tangência
demonstra que, nele, a politipia não é mais
escória da linoleogravura e, por acréscimo, tornada reta,
entende-se como continuação da curva primitiva. O ponto
de derivação corresponde à
singularização do papel tingido, ainda não
designado ou visto com um nome. Surgida como classe e nome, a politipia
separa-se do dejeto, quando, já resto, o papel tingido é
exibido como vacilação na qual o papel vedante aparece
como potência artística. Como disso, contudo, não
há vestígio fatual, pois a potência referida
é exigência da construção, não evento
que se possa entrever, a folha subjacente passa, de refugo
caído, a tingida suspensão, primeira metamorfose, na qual
a contemplação se instaura como divagação
admirada.
A segunda metamorfose, em que a classe e o nome inventam, com os
lugares da linoleogravura, uma arte imprescrita, é o tornar-se
obra da folha tingida: passando de dejeto a arte, com a
transição suspensiva, ergue-se a politipia, já
tintura composta, a merda: o
papel deixa de ser refugo e o tingimento, pendência, quando,
pulsionalmente, o suporte pintado é ofertado como arte.
Todavia, para que haja oblação,
ablação se produz na folha tingida: o corte torna a folha
tingida folha pintada, composição artística que,
ainda, institui a politipia como dom que embala, embelezante, o desejo
de contemplar. Constrói-se a primeira metamorfose, aqui, para
que a transição da folha pendente evite que se aliste a
politipia no sublime, sendo impraticável o salto pulsional
do dejeto à merda: há sublime na
amplificação poética como conversão do
horrendo ao belo, intensíssima também em
físico-química como salto de um estado a outro sem
transição por intermediário, mas não
há sublime no sentido analítico de mudança de alvo
pulsional em salto de papel impermeável a papel
artístico.
A diferença de dejeto e resto, mas também de dejeto e
obra está em que, pulsionalmente, o papel impermeável
é algo desinvestido, ao passo que o papel oscilante e o papel
composto são libidinizados, assim, sublimáveis. O corte
é, portanto, essencial à politipia, que requer,
além do nome e da classe, o juízo, em Sérgio
togado como tesoura compositora. Tanto a ablação,
quanto a oblação são pulsionais, considerando-se a
transmutação do olhar aterrorizante em
contemplação apaziguada. Na transmutação, o
gesto que lança o vedante no lixo é revezado por gesto em
que o dejeto vacila e é substituído por gesto que recorta
a folha como classe-nome, que se torna janela, assim, a um tempo,
moldura e cena, pela qual mergulha a visão apaziguante.
O itinerário das metamorfoses com que se constrói a
invenção de Sérgio retém, pois, três
gestos, seqüentes e infletidos, que derivam a politipia da
linoleogravura e, adiante, põem-nas em paralelo. Na metamorfose
final, virando o dejeto merda, declara-se a idealização;
mais, como obra única, logo, preciosa, a politipia difere da
linoleogravura, que, como iterativa, é tida como arte sem aura.
Mas esse quiasma da derivada e da primitiva opõe o ideal ao
reprodutivo; outros cruzamentos, menos enfeitiçados pela
maquinação reprodutiva, exibem a politipia tangenciando a
linoleogravura, e, assim, derivando sua poética das
idealizações desta. Em 1999, firmado o paralelismo das
duas seqüências gráficas, a poética
idealizante encolhe, tornando-se pluma singular de leque aberto em
roda; na idealização da politipia, as
duas metamorfoses presidem-lhe o nascimento, muito embora este seja
operado como corte de tesoura.
A presteza do nascimento da politipia não é a de Minerva
saída da cabeça de Júpiter, antes, a de Afrodite
feita de eleições sucessivas, tópica conhecida, na
qual a seleção das virgens mais belas da Cidade prepara
outra, que escolhe as partes de corpo que cada uma delas ostenta como
belíssima, para as compor na unidade do corpo da Deusa. Enquanto
na tópica grega a eleição subtrai virgens e partes
de virgens em vista de uma soma compositiva, a seleção de
Sérgio se produz como corte supressivo em que nada, afinal, se
acrescenta: instaura-se, nele, em compensação,
idealização desconhecida de Gregos, Romanos e outros
até o século
XVIII, e isso já no nome. Conceito moderno, a
idealização é corte de tesoura compositiva que
abre janela estética, modela beleza apolínea, sustenta
visão apaziguada: o corte, em Sérgio, é
transmutação artística de folhas tingidas, ou
ainda, pulsionalmente, doma de olhar brabo. Não menos eletivas,
as tópicas de iconografia, cor, matéria reúnem em
álbum gravuras, pois operam como critérios de
convergência de conjuntos coerentes: é no álbum que
o decoro se apreende, hiperbólico, como
idealização, na medida em que amplifica a seletividade
referida, diminuindo os efeitos de descontrole de que brotam,
desproporcionais, as primeiras politipias e as radicais de 1999.
Estabelecidas, assim, as seqüências, aclaram-se as
prescrições do rigor e da estreiteza da poética
das politipias reunidas, que, em contradição com os
momentos extremos expostos, exibem-se como a pluma arrepiada do leque
referido.
Dessarte, a poética idealizante só se desvenda quando
não é senão gênero entre outros; nela, o
corte compositivo, a homogeneidade coerente, a janela pacificadora, a
visão elisiva do olhar se evidenciam como decoro e
invenção. A pluma, explicitada como idealizante, é
arrepio parcelar em 1999, quando, pela primeira vez em Sérgio,
incluindo-se na consideração seusdesenhos,
aquarelas,
gravuras feitos desde o decênio de 70, a multiplicidade prolifera
ao acolher, sem
seleção prévia, muito de tudo. Reclassifica-se, no
leque aberto, a linoleogravura, mas também a
recém-surgida politipia, irrompendo, ao mesmo tempo, outras
artes do papel, como a técnica mista, antes inconcebível
em razão das restrições executivas ordenadas por
decoro técnico, que ressalta como o critério principal do
conjunto de obras. Pois a técnica mista é reveladora, nas
vertentes simultâneas do ético e do estético, da
mudança ocorrida: antes excluída, até como mera
possibilidade, por preceitos e decoros de coerência
técnica, torna-se foco privilegiado, pois contestador, da
reflexão sobre a obra anterior de Sérgio.
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